Esclarecimentos sobre as Projeções de Número de Óbitos pela COVID-19 no
Estado de Goiás Realizadas na Nota
Técnica 7
Prof. Dr. José
Alexandre F. Diniz Filho
Prof. Dr. Thiago F. Rangel
Apresentamos
aqui uma discussão sobre as projeções apresentadas na Nota Técnica 07 (NT07) de 5
de julho de 2020, a fim de esclarecer alguns pontos importantes sobre os dados
e especialmente em relação a algumas novas descobertas sobre a biologia do
SARs-COV-2 e sua expansão na população.
1. Conforme
detalhadamente explicado na seção 2.1 na NT07, o número de óbitos
divulgado pelas Secretarias de Saúde do Estado (SES) ou dos Municípios (SMS) em
uma data específica não pode ser comparado diretamente às projeções do modelo
na mesma data. Dentre outros aspectos, é importante considerar principalmente o
atraso na confirmação e divulgação dos óbitos em relação à data real de
ocorrência, algo inerente às dificuldades logísticas e ao complexo fluxo de
informações à medida que a pandemia avança. Por exemplo, no dia 15 de julho de
2020 a SES divulgou que já haviam sido registrados um total de 927
óbitos por COVID-19 no Estado de Goiás. Entretanto, uma análise dos
dados em 6 de agosto revela que, naquela data, já haviam ocorrido de fato 1267
óbitos, um número 36% maior (que ainda pode eventualmente aumentar à
medida que outros óbitos venham a ser confirmados);
2. Uma análise
atualizada dos padrões de atraso na divulgação e confirmação dos óbitos mostra
que em Goiás discutidos na seção 2.1 na NT07 mostra que, em média, é
preciso esperar 11 dias para que sejam confirmados 75% dos óbitos no Estado de
Goiás. Esse valor varia consideravelmente entre os municípios (entre 2 e 26
dias), dependendo da capacidade e infraestrutura das SMS em cada município e do
acúmulo da demanda nos laboratórios que realizam os diagnósticos e confirmações
da COVID-19;
Figura 1: Distribuição de frequência do tempo,
medido em dias, entre o evento óbito e a notificação do óbito no portal da
SES-GO, a partir de 16/06/20.
Figura 2: Número de dias transcorrido entre a data
do óbito e a data de notificação dos 75% de óbitos que foram notificados mais
rapidamente.
3. Em função dos
problemas e dificuldades de atualização dos dados de óbito, o modelo
apresentado na NT07 foi
calibrado até 24/06, com projeções até final de agosto e de setembro, em
diferentes cenários. A comparação entre o número observado de óbitos até 20 de
julho, data na qual se espera que a maior parte dos óbitos ocorridos
anteriormente já tenha sido registrada, revela que a trajetória do crescimento
no número acumulado de óbitos foi realmente mais próxima do cenário
verde/laranja da NT07;
Figura 3: Número observado de óbitos em Goiás
(linha preta), considerando a data do óbito, as projeções dos três cenários da
Nota Técnica 7 (linhas vermelha, verde e azul).
4. Os cenários futuros
criados no modelo e apresentados na NT07 baseiam-se no Índice de
Isolamento Social estimados pela empresa InLoco,
que tem sido utilizado como um indicador do número reprodutivo Re. Essa
relação entre o Re e o isolamento social foi validada para o Estado
de Goiás para uma fase inicial da pandemia (Diniz-Filho
et al. 2020), mas é importante entender que os cenários, na realidade,
expressam esse número reprodutivo e que outros fatores, além do isolamento
social estimado por mobilidade, podem e devem reduzir o Re (embora não
haja um parâmetro claro e definido para essa redução em diferentes situações e
protocolos);
5. O cenário vermelho da
NT07 assumiu que o
isolamento social seria mantido nos mesmos níveis de 24/06, equivalendo a um Re
em torno de 1,4, e que nenhuma medida adicional para aumentar esse
isolamento seria tomada. Embora o Índice de Isolamento Social medido
através da telefonia pela empresa InLoco
não tenha apresentado uma redução significativa no geral entre junho e julho, é
possível observar que houve algum efeito de redução, já que o Re
estimado pelo número de casos confirmados para a primeira quinzena de julho
(igual a 1,14) já foi um pouco menor do que o estimado para a 2a. quinzena de
junho (igual a 1,23). Esses valores, embora possam ainda estar afetados por
atrasos de confirmação de casos, são realmente mais próximos do esperado pelo
cenário verde da Fig. 14 da NT07
(ver também item 8 a seguir).
6. Essa redução no Re
em julho é coerente com a manutenção das medidas de isolamento pelo Governo
Estadual no início de julho, seguida por cerca de 50% dos municípios do
Estado, e com a adoção de diversas medidas adicionais desde então capazes de
reduzir o Re, incluindo o isolamento e rastreamento de contatos, aumento
na testagens, bem como o monitoramento dos casos por telemedicina e novos
aplicativos de telefonia celular, realizados por diversas prefeituras
(incluindo a SMS de Rio Verde, onde essas medidas tiveram um efeito comprovado
de diminuir o crescimento da pandemia; ver NT08);
7. Em um sentido mais
geral, portanto, é importante destacar que os intervalos de confiança para as
projeções referem-se às incertezas inerentes à dinâmica da pandemia, em termos
de número de transmissões, tempo de incubação, padrões de hospitalização, etc, mas não há uma incerteza em relação ao comportamento
da sociedade diante da pandemia, o que justifica a criação de cenários.
Conforme já ressaltado, embora o isolamento social medido através da telefonia
seja a base para definir a variação no Re, outros fatores levam à uma
redução do número de transmissões e que impactam a dinâmica da pandemia,
especialmente em médio/longo prazo;
8. É importante considerar
também que, principalmente a partir de julho, algumas ideias importantes sobre
a biologia do SARS-CoV2 e sua propagação na população começaram a se
consolidar, podendo levar a uma revisão nas projeções realizadas pelos modelos
tipo SIER. Essas mudanças passam ser perceptíveis especialmente em uma fase
mais avançada da pandemia, como a que que se encontra o Estado de Goiás, por
afetar o número de suscetíveis. Esses fatores foram discutidos recentemente em
um webinar promovido pelo Instituto Butantã e FAPESP/SP em
04/08, discutindo inclusive o padrão de declínio da pandemia em Manaus antes
do previsto pelos modelos. Essas novas ideias podem ser agrupadas em 3 tópicos:
8.1. O número de pessoas
já infectadas na população (a prevalência) pode ser maior do que os vários estudos
realizados no Brasil e no mundo sugerem, pois aparentemente o nível de
anticorpos tende a decair depois de 3 ou 4 meses, principalmente nos indivíduos
assintomáticos (Seow et al
2020). Marina Pollán e colaboradores
mostraram, em um artigo publicado na Lancet no início de julho,
que a prevalência na Espanha, já no final da pandemia, seria apenas de 5%
(chegando a 11% em Madri). Esses valores estão subestimados, inclusive porque
entre 10% e 15% de pessoas com PCR positivo e que haviam sido internadas não
apresentaram resultados positivos nos testes sorológicos;
8.2. A constatação de que
há uma subestimativa nas prevalências a partir dos inquéritos sorológicos
parece estar ligada também a um segundo ponto importante que apenas agora
começa a ser confirmado, que é a possibilidade de “imunidade cruzada” adquirida
a partir de contato prévio com outras formas de coronavírus
(e eventualmente outras viroses, ou mesmo outros fatores) (Sette & Crotty
2020; Bert et al. 2020; Mateus et al. 2020). Berg e
colaboradores mostraram também, em um artigo publicado na Science Advances, que países que
possuem campanhas obrigatórias para tuberculose (BCG) parecem ter uma curva de
crescimento inicial da COVID-19 um pouco mais lenta, já descontando
estatisticamente o efeito do tamanho população, conexão geográfica e outros
fatores. Assim, essas evidências mostram que uma parte considerável da
população seria mesmo imune ao SARS-COV2, variando também entre populações de
diferentes locais do mundo;
8.3. Finalmente, Britton et al. (2020) mostraram que a
imunidade de rebanho seria alcançada com um valor menor do que os modelos
epidemiológicos predizem a partir do R0 por causa da
heterogeneidade espacial e social nas grandes cidades. Se diferentes partes das
cidades (em termos geográficos e/ou classes sociais) possuem taxas diferentes
de transmissão, isso significa que o número de suscetíveis vai ser reduzido
mais rapidamente porque uma parte da população vai estar se contaminando mais
rapidamente e outra não, de modo que um mesmo Re inicial gera curvas
diferentes em termos de eventos de hospitalização ou óbito. Ainda há outros
fatores importantes que podem acentuar essas conclusões, especialmente se
houver interações entre classe social e classe etária, qualidade dos serviços
hospitalares ou padrões diferenciados de imunidade cruzada. De fato, em
Goiânia, por exemplo, há uma grande heterogeneidade espacial nas prevalências
estimadas e o inquérito de 11 de julho mostrou que, embora em média 6,4% da
população da cidade já teria tido contato com o SARS-CoV2, essas prevalências
variam mais ou menos entre 2,6% e 12,8% em diferentes regiões da cidade. Usar
as informações sobre a variação dessas prevalências ao longo do tempo é possível
aproximar a taxa de crescimento e de transmissão e observar que o número
efetivo Re em junho pode ter variado entre 1,1 e 2,4 entre as regiões da
cidade (talvez variando entre > 1,0 e 2,0, pelo menos);
9. Diante das novas
evidências discutidas brevemente no item 8 acima, podemos concluir que o número
total de suscetíveis pode ser na realidade menor do que o assumido no nosso
modelo (i.e., onde todos os habitantes de cada município poderiam se infectar
com o SAR-CoV2). Se as prevalências estimadas para Goiânia estão subestimadas,
então isso significa que o número de infectados na cidade seria ainda maior do
que os 6,4% estimados. Mas, ao mesmo tempo, isso pode representar uma proporção
ainda maior de infectados em relação ao total de suscetíveis se houve uma
grande proporção de pessoas imunes ao vírus. Assim, a principal consequência
dessa redução é que o número reprodutivo efetivo de transmissões em um dado
momento, o Re, seria menor do que o gerado pelo modelo, já que este
valor é o produto entre o Re calibrado a partir do isolamento social e a
proporção de suscetíveis infectados. Essa redução no Re também pode
explicar porque os valores no final de junho/início de julho apresentados no
item 5 já seriam um pouco menores do que os gerados pelo modelo (Fig. 14 da NT07), mesmo considerando a
calibração correta pelas estimativas de isolamento social feitas pela empresa InLoco
até início de junho, conforme demonstrado por Diniz-Filho
et al. 2020). Griffoni et al. haviam sugerido, em
um artigo publicado na Cell no final de maio, que
entre 40% e 60% da população poderiam ser imunes à COVID-19, embora ainda não
haja mais estimativas dessa proporção (e, conforme discutido no item 8, essa
proporção pode variar entre países e regiões, ou mesmo dentro de uma mesma
cidade). De qualquer modo, apenas como referência, se apenas 50% da população
for suscetível, isso significa que os eventos de hospitalização e óbitos serão
reduzidos de forma não-linear em função da relação entre o Re e o
tamanho da epidemia (i.e., a redução nos eventos posteriores seria maior do que
50%). Além da redução nos eventos, o pico da pandemia ocorreria em um momento anterior
do que o previsto por um modelo que assuma 100% de suscetíveis;
10. Conforme já havia
sido antecipado nas considerações finais da NT07 (pg. 47), as projeções
de longo prazo e/ou realizadas em um momento em que já se espera um impacto
mais significativo do número de suscetíveis na redução do R efetivo devem ser
avaliadas com cautela. De qualquer modo, considerando os pontos apresentados no
item 2 acima e na seção 2.1 da NT07,
é preciso avaliar cuidadosamente os dados a fim de tentar considerar os atrasos
de notificação e confirmação antes de concluir sobre a adequação dos cenários e
sobre o estágio da pandemia em Goiás. À medida que novos trabalhos referentes
aos itens 8 e 9 acima sejam publicados e mais evidências sobre esses novos
parâmetros sejam geradas, será possível reavaliar a calibração do ABM-COVID-GO
III e realizar novas projeções que permitam entender de forma mais acurada a
dinâmica de longo prazo da pandemia e analisar o impacto de novas intervenções,
incluindo potenciais campanhas de vacinação.
Goiânia,
11 de agosto de 2020